Mentira
Por José Carlos Munhoz Navarro
Certo ou errado, verdade ou
mentira, todos os dias ele se sentava à frente do espelho e via as mágoas da
sua vida no seu rosto sulcado por rugas profundas e olhar distante.
Aos poucos, um bigode amarelo aqui,
uma sobrancelha espalhafatosa, uma bocarra, e, para completar um redondo e
vermelho nariz de palhaço, desaparecia o José da Silva e estava em cena o Zeca
Peruibe.
Respeitável Publ..., o apresentador
não conseguia concluir sua fala pois o palhaço surgia por traz do palco,
tropeçando em seus sapatos, na bandinha, no mundo e se enroscava com o mestre
de cerimônias levando-o ao chão e começava suas palhaçadas da sua noite no
circo. E por quase uma hora, levava tombos reais, dava e recebia fantasiosas
bofetadas, fazia caretas mil, ria e chorava – de verdade e de mentira - até sair de cena, extenuado e gratificado,
pois tinha feito aquela meia dúzia de crianças e respectivos pais, passarem
momentos de alegria e descontração. De sexta a quarta, pois de quinta ia ao
hospital da cidade para fazer seu número.
No hospital sua função era mais
elevada. Por uma manhã inteira, às vezes por uma tarde inteira, às vezes por um
dia inteiro, fazia aqueles jovens pacientes se esquecerem de injeções, soros,
curativos e bandagens, de terapias e exames para se alegrarem, e mais,
sorrirem, e mais, gargalharem com suas caretas e micagens. E todas as crianças,
para não dizer, enfermeiras e médicos tinham cada um o seu brilhante e berrante
nariz vermelho e se juntavam aquele Zeca Peruibe, alegre e descontraído palhaço,
alter ego do José da Silva, triste e solitário.
Entrava nos quartos mostrando
apenas o rosto e recebia em troca o grito feliz da criança que naquela hora,
naquele dia a verdade dolorosa da sua vida sumia, deixando espaço para a
verdadeira mentira que Zeca lhe contava e assim era, e assim foi.
O palhaço chorava escondido,
chorava sim, quando punha sua cabeça na porta e via a cama vazia, leito limpo e
liso, lençóis arrumados, dizendo que aquele amiguinho não estava mais lá, não
estava mais com a gente. Mas ele engolia sua verdade dolorosa e ia ao próximo
quarto externar – não o que sentia, mas sim o que o pequenino na próxima cama
dele esperava. E assim foi por tantos e tantos anos que o José da Silva um dia
se imaginou como sendo a própria mentira, nomeando Zeca Peruibe como a absoluta
verdade.
Tanto é verdade que depois que ele
se foi, muitos anos depois, o hospital colocou em destaque um pequeno retrato
que indica a ala infantil, nele não está a austera e sisuda figura do José, mas
sim, a feliz e deliciosa mentira que foi o Zeca Peruibe (ou teria sido, na
essência, o inverso?).
Nenhum comentário:
Postar um comentário