SAUDADES
Quando eu tinha meus treze anos de idade, ia todos os
domingos, logo após o almoço, na casa de um amigo, só para ver o “Cirquinho do
Arrelia” na televisão, pois naquele tempo não tínhamos TV em casa. Era
maravilhoso ver o grande palhaço em ação: ele e sua bengala, quase mágica,
quase viva. Valdemar Seyssel, o Arrelia nos deixou recentemente, aos 99 anos de
idade. Noventa e nove anos!. Ele era um dos grandes mestres circenses ainda
existentes. Foi um dos criadores do “Circo Escola” que ainda funciona em São Paulo.
Eu era admirador da família Seyssel: o Walter (ou Vicente) Seyssel, o
Pimentinha, era a “escada” do Arrelia. Escada é o termo que se usa para o ator
que dá as “deixas” para o comediante dizer a piada ou fazer a “graça”. Ave,
Arrelia, cheio de graça! Lembro que havia ainda a Amélia Seyssel, o Henrique
Seyssel e o Eltron Seyssel; que embora da família, jamais soube direito qual o
grau de parentesco entre eles. Lembro que em 1981 o artista (PALHAÇO) Arrelia
esteve em Taboão da Serra, minha cidade. Ele se apresentou no Cemur. ‘A época
ele já beirava os setenta anos. Fã incondicional que sou, levei dois sobrinhos
que adoro, o Rogério e a Daniela, para que o conhecessem. Ele nos recebeu no
seu “camarim”. Foi elegante e simpático para com meus sobrinhos.
Jamais esquecerei o espírito bondoso desse homem que fez
cinema, teatro e televisão. Nem faz tanto tempo assim vi na TV Cultura de São
Paulo, um filme nacional em que ele atuou junto com Procópio Ferreira; antigo
ator e pai de Bibi Ferreira, atualmente diretora de teatro do Rio de Janeiro.
Já sinto saudades do Arrelia!
Saudades! Somente duas línguas têm uma palavra que define
aquela dor que nos dá no coração quando estamos muito tempo afastados das
pessoas que amamos: a língua Portuguesa e a língua Árabe. Em árabe, o “eshtiak”
(ou “shoo que”, quando usado só para pessoas), é a “palavra mãe" de uma
das mais lindas palavras da língua Portuguesa: a palavra “saudade”. A presença
árabe em tantos anos (séculos) de Península Ibérica não podia passar em brancas
nuvens; e não passou. Até um dos clássicos da literatura mundial, o “El Cid”,
só poderia ter sido escrito se os árabes fizessem parte da Península Ibérica. E
o povo árabe fez (faz) parte da Cultura Ibérica! De resto e deixou-nos um sem
números de palavras, músicas, instrumentos musicais, temperos, costumes e
comidas.
É muito bom escrever: escrevendo passo a limpo as coisas que
quero contar e que não deram certo. Hoje senti saudades, talvez motivado pela
morte do palhaço Arrelia, daí resolvi escrever sobre esta palavra, que já foi
“dissecada” milhões de vezes. Em crônica o texto tem que ser de afirmações;
nada de fantasias, portanto só vou escrever a verdade, nada mais que a verdade.
Ter saudades não é só dizer "nostalgia", para
traduzir saudade em outra língua. Saudade, conforme diz a canção, "é uma
tristeza que não sabemos de onde vem".
Eu tenho saudades de tudo que marcou a minha vida! Nas
lembranças dos "causos" que meus pais e avós, sertanejos, me
contavam; quando vejo seus retratos; quando sinto cheiros, como daquele chá de
hortelã com açúcar queimado (único que tomei na vida, preparado pela minha vovó
Biluca); quando ouço uma voz, que me lembra alguém a quem não esqueci; quando
me lembro das pessoas que convivi no passado. Ah, eu sinto saudades. Saudades
muitas, montanhas de saudades! Sinto saudades dos amigos que nunca mais vi, de
pessoas com quem não mais falei ou cruzei. Sinto saudades de minha infância, do
meu primeiro amor, da primeira professora, a dona Dulce de São Simão - SP; dos
meus amigos de infância, do primeiro beijo... .
Sinto saudades até do presente, que não consigo aproveitar
direito, devido ao redemoinho que se transforma nossa vida moderna, tenho
saudades do passado, próximo e distante, como de quando conheci minha esposa e
namoramos e noivamos por longos dezoito meses, também sinto saudades do futuro,
que não sei se vou conhecer, mesmo assim estou saudoso. Este futuro no qual
apostei toda minha vida: e idealizei, me preparei, estudei, passei privações de
vários tipos, mesmo assim sinto saudades, até porque eu não o conheço: nem ele
a mim!. É possível que o futuro seja diferente de tudo que sonhei, mesmo assim,
dele sinto saudade. Sinto saudade até do barulho da enceradeira, que hoje nem
existe mais nas lojas de departamentos, tenho saudades! Tenho saudades de quem
deixei, de quem me deixou, dos amigos da escola rural e da faculdade, dos times
de futebol de várzea, tenho saudades! Tenho saudades de quem um dia disse que
viria e não veio; sinto saudades de quem apareceu na minha vida como um furacão
ou um cometa; sinto saudades! Sinto saudades da dona Guidinha e do Seu Joaquim,
meus pais, a quem Deus levou tão cedo e nem tive a chance de dizer-lhes o
quanto os amava, sinto saudades. Sinto saudades do meu irmão primogênito e
minha irmã mais velha, além da irmã logo abaixo de mim, que tão cedo se foram,
sinto saudades. Sinto saudades novas e saudades antigas, sinto saudades até de
quem nem conheci! Sinto saudades de uma tarde no circo mambembe, onde assisti
teatro pela primeira vez na vida, sinto saudades! Sinto saudades, eu campesino,
das “procissões de chover”, bem no auge das grandes secas que matavam nossas
lavouras de subsistência, sinto saudades!
Sinto saudades dos que se foram e dos quais não me despedi,
nem direito nem torto, como meus irmãos queridos Oswaldo, Táta e Elsa, que não
tiveram como me dizer adeus... . Tenho saudades de gente que passou na calçada
contrária da minha vida, pessoas que só enxerguei de vislumbre; tenho saudades
de coisas que eu tive e de coisas que nem sei se existiram na minha vida, mas
se soubesse, decerto gostaria de experimentar! Tenho saudades das gentes que,
por eu ter cruzado a rua, deixei de conhecer. Sinto saudades do meu
cachorrinho, o Viajante, que tive um dia, quando criança e que me amava
fielmente, como só os cães de crianças são capazes; dos livros que li e que me
fizeram viajar, dos discos que ouvi e que me fizeram sonhar, das coisas que
vivi e das que deixei passar sem curtir na totalidade, para resgatar alguma
coisa que nem sei o que é e nem onde perdi, mas mesmo assim, sinto saudades!
Vejo o mundo girando e penso que poderia estar sentindo
saudades em qualquer lugar do mundo ou do planeta. E meu sentimento poderia se
expressar em qualquer língua, mas que minha saudade, por eu ser brasileiro, só
fala Português, embora, lá no fundo, sei que ela fala todos os idiomas, mesmo
que eles não saibam descrevê-la. Creio que todos os povos sintam saudades,
apenas eles não sabem demonstrá-la por palavras. E é por isso que eu tenho
ainda mais saudades. Porque encontrei uma palavra que posso usar sempre que eu
sentir este aperto no peito, irreverente, gostoso, triste, amargo, visceral,
mas que funciona melhor do que um sinal vital quando se quer falar de vida e de
sentimentos. Saudade é a prova inequívoca de que somos sensíveis; de que amamos
as coisas boas que perdemos ao longo da nossa existência, inclusive o palhaço
Arrelia.
- Sentir saudade é prova de que sou um ser humano; e
brasileiro!
Criado em: 29/07/2005
PS 1: este texto tem sido veiculado na internet, com
imagens, sem minha permissão. Infelizmente, alguns trechos foram retirados e
alguns outros incluídos como se fossem de minha autoria. Por favor, o texto
correto é este, sem tirar nem por! O outro é apenas uma espécie de
"Frankenstein", embora tenham me informado que a aparência era boa.
Repito: o texto que circula na internet, sem minha permissão
e com o meu nome, é apenas parcialmente meu.
São Paulo, 03 de novembro de 2009.
PS 2: Em 09/05/2011, perdi minha irmã Elsa, que morava em
Campo Grande (MT). Mais uma vez a saudade veio me acometer! Ela faleceu
exatamente no dia em que completava 60 anos de idade. Que pena! Na próxima
semana completará dois anos sem ela. Que saudade!
São Paulo, 05 de maio de 2013.
Antonio Carlos Affonso dos Santos - ACAS
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