Abriu a caixa de papelão com a lentidão cautelosa da velhice
e o tremor da emoção.
Tesouros de valor pessoal emaranhando-se como fios de uma
trama infinita.
Alguns aromas foram se perdendo com o tempo.
O cetim da fita desfiada na ponta eternamente tocada pelo
macio da lembrança.
Faltava a chupeta que, pendurada ali, costumava descansar
sobre a lã rosa e delicada. Era inverno quando ela nasceu. O som da primeira gargalhada surgiu do nada
ao seu ouvido. Não sabia que tinha esquecido.
Um sorriso involuntário e sutil de saudade enfeitou seus lábios
derrotados pelo tempo.
Poucos motivos para alargar a boca fina e contrita dos seus
80 anos.
Uma moeda estrangeira escapou da sua mão para rodopiar no
chão e fez seu corpo estremecer mais de susto que de emoção. A fragilidade em
carne viva.
A cortina transparente agitou suas flores azuis e delicadas
por influência do vento. Um sopro de verão aliviando o abafado dos dias longos
e pesados de calor.
Uma flor seca e sem sentido de um romance sem importância.
Por que estaria ali?
Um sino pequeno, porém pesado, que nunca serviu para acalmar
os alunos barulhentos do colégio.
Fosse o sino da igreja na hora da missa aos domingos com as
amigas e o flerte esperando na esquina, a lembrança abriria seus braços com
alegria. O rapaz espichado e de barba curta. Olhos verdes, talvez, piscando
para o sol da manhã. Para ela era o mais bonito e o mais gentil da sala de
aula. Escreveu o nome dele numa flor em
seu diário.
A página da brochura,
dobrada em quatro. Uma das letras borrada de alguma lágrima do passado.
Certamente do dia em que as amigas invadiram seu segredo e zombaram de sua
paixão, em meio à aula de português. Saudade boa desse tempo de amor na
adolescência.
Um pé do sapatinho de tricô que não terminou a tempo.
Frustração causando uma saudade indesejável de tudo o que deixou de fazer.
Cada objeto com uma linguagem diferente para as lembranças,
tanto as coloridas, quanto as nubladas.
Um pedaço de tule lilás com flores de crochê penduradas na
ponta. Guizos e risos de uma tarde de sábado com poesia e criatividade. Música
suave espalhando seu canto pela sala ao som dos pássaros na vizinhança.
O som do elástico da carteira marrom, amassada de tanto
guardar no bolso traseiro da calça de tergal para trabalho, ou da bermuda dos
tempos de aposentado. A figura do pai descendo a rua em suas pernas finas, mas
firmes.
Da mãe somente o pingente de N Sra. das Graças. As milhares
de lembranças dela gravadas na memória perfeita que arquivava histórias de
pessoas diversas: parentes, amigos...
Pouca coisa para lamentar de uma vida comum e sem tragédias.
Culpas, remorso, arrependimento... Sentimentos comuns na
vida de todo ser humano.
Então de onde vem esse tremor revirando sua caixa de saudades?
Da sua realidade atual e vazia. Do telefone que não toca. Da
porta que raramente se abre para entrar alguém. O ex-marido em sua nova vida. A
filha querida distante na sua rotina executiva.
Uma caixa muito grande para poucas lembranças e tanta solidão.
Guardar ou descartar todo esse conteúdo de data vencida?
Coisa do passado esperar a morte como se a vida tivesse
acabado. Deveria ter o ânimo de algumas amigas que viviam com uma agenda lotada
de compromissos: bailes, voluntariado e fofoca. Mas não tinha. Tampouco se
deixava levar pelo otimismo moderno sobre a terceira idade.
Procurou por um milagre na sua velha caixa de saudade. Não
se viu mais ali naqueles objetos. Só serviam para maiores lamentos.
Fechou a caixa e ligou a TV. Precisava de um ânimo a mais:
uma notícia, uma perspectiva.
Enfim o telefone tocou. Preparou-se para despachar,
certamente algum pedido de donativo, ou oferecimento de um novo cartão de
crédito.
Era a filha marcando um chá para o fim da tarde.
Estranhou. Na certa está em apuros, raciocinou sua mente
desconfiada.
Mesmo assim distraiu-se com um ânimo a mais, um banho mais
demorado e um vestido de flores e tecido suave. A voz infantil gargalhou de
novo no seu coração. A sensação da saudade no toque na fita de cetim... Enfim a
vida tem jeito.
A campainha tocou e a filha entrou, desta vez sem pressa.
Nunca tinha tempo para sentar e conversar um pouco. Achou-a pálida e
desalinhada. Sempre tão impecável.
De novo o pessimismo tomando conta. Decerto brigou com o
marido.
A filha se ajeitou no sofá de dois lugares desabando como se
tivesse feito um grande esforço.
Está doente. Está morrendo, disparou um coração de mãe
alarmado.
- O que houve, Cristina? Diga logo.
Nesse instante foi como ouvir o sino da igreja, ou a música
suave das tardes especiais de sábado. A música infantil dedilhada no pianinho
que lhe dera de presente aos 5 anos de idade...
Sons de alegria rimando com a fumaça do chá de uma tarde
aconchegante entre mãe e filha.
Ela respirou fundo fazendo suspense e recuperando o fôlego
perdido na subida dos longos degraus que levavam à casa da mãe que a
interrogava com um olhar apreensivo de dar dó.
Pegou a mão da mãe, acariciou, como não fazia há anos e
todos os conflitos vividos por elas se dissiparam como mágica nesse momento de
alegria:
- Mãe, estou grávida.
Na caixa as lembranças se agitaram. Algumas com ciúmes.
Outras em festa. Em breve receberiam novos objetos e lembranças para nunca mais
esquecer.
Vera Lúcia de Angelis
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