UM QUADRO DE MEMÓRIAS
Pés descalços na terra dura do quintal.
Gazelas e margaridas enfeitando o muro da divisa com a casa
de Sr. Manoel e Dna. Cida.
Meia dúzia de pés de milho enfeitando o muro da casa que meu
tio alugava.
Próximo à porta do porão a palma cor de pêssego que brotava
e florescia, para depois desaparecer na terra e meses depois a batata florescer
de novo repetindo o ciclo.
Perto dela a sagrada roseira rodeada por um fosso de cimento
que meu pai enchia de água para que as formigas não roubassem todas as folhas
dela. E roubavam sempre.
Touceiras de tiririca serviam de pés de alface para vender
na minha quitanda imaginária, situada próximo à casa de madeira do cliente mais
assíduo, Totó, o vira lata de pelo branco com manchas pretas. A língua caindo
de lado e pingando da ofegante aventura de me seguir pelo quintal fazendo
farra. O olhar fiel, agora bem
comportado espiando meu teatro, disfarçado talvez da vontade de pular a grade
do portão e fugir para a aventura da rua.
Ao lado do portão o girassol de pescoço inclinado como que
saudando o ir e vir da família.
Não me lembro de outras plantas ou flores nessa casa do
bairro da capital paulista, Itaberaba (minha vida sempre rodeada por esse
prefixo ITA). Sei que com o passar do
tempo e com o progresso profissional de meu pai, como contador na Tecelândia,
loja de tecidos do Bom Retiro, a casa ia se adiantando em direção à rua.
Essa imagem do jardim descrito vinha da janela do quarto
onde dormiam meus pais. A sala era parte de um sonho realizado com o sofá
dobrável que acolhia meu sono e de minha irmã mais velha. O cobertor vermelho e
grosso que tivemos que abandonar numa noite chuvosa porque minha irmã caçula
resolver nascer bem àquela hora.
Da janela do quarto eu espiava as flores e repreendia Totó,
em riste, sobre a grade do muro, pronto para dar o bote, digo o pulo de
liberdade.
Era esperto e fugia da carrocinha. Mas uma vez foi pego e
meu pai jurou que não o resgataria, mesmo sob o meu pranto rolando sobre os
pratos que eu lavava após o almoço do fatídico dia.
Talvez as lágrimas das filhas tenham feito meu pai perder
uma tarde de trabalho para ir ao canil Municipal, de táxi, para buscar o
cachorro levado. Ainda perdeu os óculos na correria atrás do animal, junto ao
funcionário que abrira o portão, mesmo sob os protestos de meu pai que avisara:
- Cuidado, ele é danado e vai fugir.
- O senhor quer saber mais que eu?
E meu pai sabia pois Totó desembestou pelo canil e deu um
trabalho danado para ser resgatado. E prejuízo também. Além do sorvete caro de
copinho que minha mãe comprou para mim e para minha irmã caçula tentando
aliviar nossa tristeza pela perda do animal de estimação.
Da esquina ouvi o seu latido achando que fosse minha
imaginação.
Lá veio ele todo sujo me encontrar desesperado de contente.
Como quando eu voltava dos dias de férias na casa de meus
avós maternos e me sentava no chão para que me fizesse aquela festa.
Graças a Deus tive uma infância feliz e essas lembranças
formam como um quadro de uma parte dela. São muitas que voltam à minha vida
como herança de meus dedicados pais que batalharam para realizar os sonhos de
todos, à custo de trabalho e muita dignidade com que nos presentearam e
ensinaram.
Fica assim a foto tirada por detrás da janela com flores,
amor e muita imaginação.
O girassol quase que sorrindo no portão. Totó ensaiando
outras fugas e todas as brincadeiras que ali se realizaram com toda a singeleza
que a infância pode trazer.
E que a criança dentro da gente cante, dance e corra para a
chuva refrescando essas eternas e valiosas memórias.
Vera Lucia de Angelis
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