quinta-feira, 15 de outubro de 2015

UM QUADRO DE MEMÓRIAS - VERA LÚCIA DE ANGELIS

UM QUADRO DE MEMÓRIAS


Pés descalços na terra dura do quintal.
Gazelas e margaridas enfeitando o muro da divisa com a casa de Sr. Manoel e Dna. Cida.
Meia dúzia de pés de milho enfeitando o muro da casa que meu tio alugava.
Próximo à porta do porão a palma cor de pêssego que brotava e florescia, para depois desaparecer na terra e meses depois a batata florescer de novo repetindo o ciclo.
Perto dela a sagrada roseira rodeada por um fosso de cimento que meu pai enchia de água para que as formigas não roubassem todas as folhas dela. E roubavam sempre.
Touceiras de tiririca serviam de pés de alface para vender na minha quitanda imaginária, situada próximo à casa de madeira do cliente mais assíduo, Totó, o vira lata de pelo branco com manchas pretas. A língua caindo de lado e pingando da ofegante aventura de me seguir pelo quintal fazendo farra.  O olhar fiel, agora bem comportado espiando meu teatro, disfarçado talvez da vontade de pular a grade do portão e fugir para a aventura da rua.
Ao lado do portão o girassol de pescoço inclinado como que saudando o ir e vir da família.
Não me lembro de outras plantas ou flores nessa casa do bairro da capital paulista, Itaberaba (minha vida sempre rodeada por esse prefixo ITA).  Sei que com o passar do tempo e com o progresso profissional de meu pai, como contador na Tecelândia, loja de tecidos do Bom Retiro, a casa ia se adiantando em direção à rua.
Essa imagem do jardim descrito vinha da janela do quarto onde dormiam meus pais. A sala era parte de um sonho realizado com o sofá dobrável que acolhia meu sono e de minha irmã mais velha. O cobertor vermelho e grosso que tivemos que abandonar numa noite chuvosa porque minha irmã caçula resolver nascer bem àquela hora.
Da janela do quarto eu espiava as flores e repreendia Totó, em riste, sobre a grade do muro, pronto para dar o bote, digo o pulo de liberdade.
Era esperto e fugia da carrocinha. Mas uma vez foi pego e meu pai jurou que não o resgataria, mesmo sob o meu pranto rolando sobre os pratos que eu lavava após o almoço do fatídico dia.
Talvez as lágrimas das filhas tenham feito meu pai perder uma tarde de trabalho para ir ao canil Municipal, de táxi, para buscar o cachorro levado. Ainda perdeu os óculos na correria atrás do animal, junto ao funcionário que abrira o portão, mesmo sob os protestos de meu pai que avisara:
- Cuidado, ele é danado e vai fugir.
- O senhor quer saber mais que eu?
E meu pai sabia pois Totó desembestou pelo canil e deu um trabalho danado para ser resgatado. E prejuízo também. Além do sorvete caro de copinho que minha mãe comprou para mim e para minha irmã caçula tentando aliviar nossa tristeza pela perda do animal de estimação.
Da esquina ouvi o seu latido achando que fosse minha imaginação.
Lá veio ele todo sujo me encontrar desesperado de contente.
Como quando eu voltava dos dias de férias na casa de meus avós maternos e me sentava no chão para que me fizesse aquela festa.
Graças a Deus tive uma infância feliz e essas lembranças formam como um quadro de uma parte dela. São muitas que voltam à minha vida como herança de meus dedicados pais que batalharam para realizar os sonhos de todos, à custo de trabalho e muita dignidade com que nos presentearam e ensinaram.
Fica assim a foto tirada por detrás da janela com flores, amor e muita imaginação.
O girassol quase que sorrindo no portão. Totó ensaiando outras fugas e todas as brincadeiras que ali se realizaram com toda a singeleza que a infância pode trazer.
E que a criança dentro da gente cante, dance e corra para a chuva refrescando essas eternas e valiosas memórias.



Vera Lucia de Angelis

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