terça-feira, 13 de outubro de 2015

COISA DE CRIANÇA - ANA POLESSI

COISA DE CRIANÇA


- Você se lembra da casa na árvore, Clotilde?
Mas que casa na árvore é essa, que eu nunca pratiquei arborismo, cidadão?
- E do balanço feito de pneu velho?
Não é do meu tempo, não. Não criava dengue nesse pneu?
- E o trem? Lembra do trem que passava aqui perto?
Que trem? Só se for o Trem das Onze do Adoniran.
Começo a pensar que essas pessoas que dizem me conhecer tão bem estejam se lembrando das próprias infâncias ou das infâncias de outras pessoas. Infâncias das quais eu não participei.
Quando tento me lembrar de certas coisas tenho a sensação de ter subido numa montanha muito alta e quando olho lá embaixo eu só consigo distinguir uns contornos da paisagem.
Não que as vivências não tenham importado, porém, eram muitas lembranças para carregar por toda a vida e daí trouxe comigo, para o presente, só o que importava.
E só o que tenho certeza de que vivi.
- Clotilde, você se lembra da boneca linda que eu te dei quando você era pequenininha? Tão bonitinha, você era! Loirinha, de cabelos cacheadinhos!!!
- Tia Olívia, eu nunca tive cabelo loiro cacheado. Meu cabelo foi liso, castanho, desde que eu nasci.
- De jeito nenhum! Você era loirinha, parecia um anjinho! Eu tenho foto! Tenho foto prá te mostrar! E eu te dei uma boneca que comprei em Paris!
Vou embora da casa da tia Olívia porque senão perco o ônibus. Passo dias tentando me lembrar dessa boneca comprada em Paris.
Na época em que eu era criança não tinha essa facilidade de fazer foto digital. Foto era com máquina e máquina era muito cara. O filme que ia na máquina era caro. Era preciso pensar muito antes de tirar uma foto. Meus pais demoraram para tirar foto minha porque a dona da máquina era a tia Olívia: “Será que a Clotilde não vai crescer e ficar mais bonitinha?... Deixa ela crescer que é capaz de ficar melhor. Daí a gente tira foto.”
Mas que boneca parisiense é essa que a tia Olívia me deu? Ligo para minha irmã:
- Ah! Eu me lembro dessa boneca, Clotilde! Era linda! Com a carinha de biscuit, que era coisa chique na época. Tinha um vestido lindo, parecido com o da Vivien Leigh no Vento Levou! Tia Olívia tinha ciúmes dessa boneca! Foi pra você que ela deu? Tia Olívia te amava tanto assim?
Gente, mas que amor todo era esse que não me lembro!? E o que fiz com essa boneca?
De tanto forçar a mente acabou surgindo lá do fundo uma imagem de uma menininha loirinha, brincando alegremente com uma boneca deslumbrante, num cenário bucólico.
Sim! Eu me lembro do diabo da boneca! E daí sinto um alívio, vejo a mim mesma, pequena, sorrindo! Eu era loira? Será?
Ligo para tia Olívia: Tia, eu me lembro! Eu me lembro! Foi uma das maiores alegrias de minha infância! Que bonita a boneca!
- Que boneca?
- Aquela boneca de Paris, tia! Eu me lembro da boneca!
- Ah, tá! Sei! Então...achei a foto! Eu dei a boneca não foi prá você! Foi para a sua prima, a Maria Eduarda.
É verdade!... a tia Olívia sempre preferiu a Maria Eduarda. Uma chata, de cabelo cacheadinho, loirinha, metida. A menina que eu via na lembrança era a Eduarda.
- Eu dei a boneca pra Eduardinha e logo em seguida você derrubou a sua priminha no chão. A Eduardinha quebrou o braço e a boneca! Francamente, Clotilde! Até hoje você não se dá bem com a sua prima! Quanta inveja, hein? Justo ela que é tão linda, meiga, inteligente, casou com um empresário de sucess...
Desligo o telefone na cara da tia Olívia.

A Eduarda pode até ter se dado bem na vida, mas que ficou sem a boneca, ficou.

Ana Polessi

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