PRIMAVERA NO METRÔ
Entrei no metrô e depois de duas estações em pé, eu e minha amiga vislumbramos dois lugares recém-liberados e nos jogamos ali. Estávamos desde manhã andando por aí, sem direção. Estávamos de férias em Londres e saíamos só com o mapa do metrô. Creio que naquele dia tínhamos ido visitar o parque da rainha.
Entrei no metrô e depois de duas estações em pé, eu e minha amiga vislumbramos dois lugares recém-liberados e nos jogamos ali. Estávamos desde manhã andando por aí, sem direção. Estávamos de férias em Londres e saíamos só com o mapa do metrô. Creio que naquele dia tínhamos ido visitar o parque da rainha.
Estranhamente o sol esteve presente
durante toda a nossa viagem. Os londrinos, acostumados aos dias nublados, mesmo
na Primavera, estavam muito bem humorados. Londres na Primavera me comoveu
profundamente porque o sol londrino é um sol shakespeariano, suave, morno – é
quase uma iluminação de teatro, que realça dramaticamente os monumentos
espalhados pelas ruas e o colorido das flores. Não é um sol brasileiro,
escancarado. É um sol de pintura, antigo e dourado.
O sol começa a se por às nove da noite e
você sente o cheiro do verde dos parques e das rosas da rainha junto com a
brisa fresca.
Enquanto o metrô corria, olhamos para os
bancos que estavam de frente para os nossos assentos e vimos o casal. O homem
deveria ter oitenta anos. Os cabelos muito, muito brancos, prateados, e ainda
ostentava um topete ousado. Pele branquinha e umas feições muito bonitas. Dava
a impressão de que foi bonito a vida toda. Irradiava bondade. Não sei por que
achei isso. Não era só por ser alguém idoso. Nem todo velho é bom. Existem
velhos maus, que já eram maus antes de se tornarem velhos. E também não tinha
nada a ver com seus belos traços, pois há muito tempo se sabe que gente linda
pode ser ruim. A boa impressão que tive, compartilhada pela minha amiga, não
tinha nada a ver com a aparência física dele.
A mulher devia ser alguns anos mais
jovem que ele. Cabelos prateados e curtos, linda. Quando jovem deve ter
arrasado corações e ainda era evidente no rostinho perfeito, a formosura de seu
tempo de moça. Uma rosa inglesa, eu pensei. Os dois estavam vestidos com
cuidado e discrição e viajavam juntos, abraçados e com as mãos unidas. Estavam
adormecidos quando chegamos.
Parecia uma visão de sonho. Aquelas duas
figuras antigas, apaixonadas, adormecidas ali, sem preocupação com o resto do
mundo. Como se aquele vagão fosse um trem encantado em que eles estivessem
vivendo desde a juventude. Envelheceram ali, vivendo apenas do amor que sentiam
um pelo outro, não precisando de mais nada para sobreviver. Eu e minha amiga
pensamos o mesmo: “Romeu e Julieta fugiram da Itália para Londres junto com
Shakespeare e foram morar no metrô!”
O homem abriu os olhos levemente. Eram
muito azuis. Voltou a fechá-los e trouxe a mão da mulher mais para perto do seu
peito. Nem se deu ao trabalho de olhar ao redor. Ele não tinha preocupações com
bandidos ou terroristas. Estava calmo, feliz.
Minha amiga sugeriu que tirássemos uma
foto, mas não tivemos coragem. Era lindo demais ver aqueles dois, abraçados, à
mercê de um mundo todo ao qual eles ignoravam com aquela tranquilidade de quem
não tem nada a perder, porque o bem mais precioso que eles tinham ninguém
poderia roubar.
Pareciam tão desprotegidos, porque
quando uma pessoa dorme está tão vulnerável. E porque eram tão delicados.
Talvez fossem seres encantados, como nos contos de fadas. Só sei que não tive
coragem nem de acordá-los e conversar com eles e dizer da grande emoção que me
causaram e também não tive coragem de fotografá-los enquanto dormiam. Não me
pareceu correto. Talvez eles desaparecessem quando fossem despertados. Eu sabia
que ia cometer um ato de suprema grosseria, despertando aqueles dois seres
lindos.
Atravessamos a cidade apreciando o
casalzinho. Sentimo-nos como aqueles anjos do filme do Win Wenders. Eles nem
sabiam que estávamos lá, mas velamos o sono deles durante a curta corrida de
metrô. Estávamos prontas a protegê-los de qualquer mal. Saltamos em nossa
estação e o casal seguiu viagem. Eles nem fazem ideia de que os trouxemos em
nossas lembranças.
O Romeu e a Julieta do metrô de Londres,
nem soube seus nomes, e eles nem sabem que viraram tema de uma pequena crônica
brasileira. Por esta altura já está começando o Inverno lá na Inglaterra, mas
tenho certeza de que onde quer que aquele casal esteja, ainda será Primavera.
Mesmo dentro de um prosaico metrô.
Primavera sempre no universo e no amor desse casal.
ResponderExcluirPrimavera sempre na sua inspiração maravilhosa, Ana. Adorei o texto.Parabéns.