terça-feira, 22 de setembro de 2015

PRIMAVERA NO METRÔ - ANA POLESSI

PRIMAVERA NO METRÔ


Entrei no metrô e depois de duas estações em pé, eu e minha amiga vislumbramos dois lugares recém-liberados e nos jogamos ali. Estávamos desde manhã andando por aí, sem direção. Estávamos de férias em Londres e saíamos só com o mapa do metrô. Creio que naquele dia tínhamos ido visitar o parque da rainha.
Estranhamente o sol esteve presente durante toda a nossa viagem. Os londrinos, acostumados aos dias nublados, mesmo na Primavera, estavam muito bem humorados. Londres na Primavera me comoveu profundamente porque o sol londrino é um sol shakespeariano, suave, morno – é quase uma iluminação de teatro, que realça dramaticamente os monumentos espalhados pelas ruas e o colorido das flores. Não é um sol brasileiro, escancarado. É um sol de pintura, antigo e dourado.
O sol começa a se por às nove da noite e você sente o cheiro do verde dos parques e das rosas da rainha junto com a brisa fresca.
Enquanto o metrô corria, olhamos para os bancos que estavam de frente para os nossos assentos e vimos o casal. O homem deveria ter oitenta anos. Os cabelos muito, muito brancos, prateados, e ainda ostentava um topete ousado. Pele branquinha e umas feições muito bonitas. Dava a impressão de que foi bonito a vida toda. Irradiava bondade. Não sei por que achei isso. Não era só por ser alguém idoso. Nem todo velho é bom. Existem velhos maus, que já eram maus antes de se tornarem velhos. E também não tinha nada a ver com seus belos traços, pois há muito tempo se sabe que gente linda pode ser ruim. A boa impressão que tive, compartilhada pela minha amiga, não tinha nada a ver com a aparência física dele.
A mulher devia ser alguns anos mais jovem que ele. Cabelos prateados e curtos, linda. Quando jovem deve ter arrasado corações e ainda era evidente no rostinho perfeito, a formosura de seu tempo de moça. Uma rosa inglesa, eu pensei. Os dois estavam vestidos com cuidado e discrição e viajavam juntos, abraçados e com as mãos unidas. Estavam adormecidos quando chegamos.
Parecia uma visão de sonho. Aquelas duas figuras antigas, apaixonadas, adormecidas ali, sem preocupação com o resto do mundo. Como se aquele vagão fosse um trem encantado em que eles estivessem vivendo desde a juventude. Envelheceram ali, vivendo apenas do amor que sentiam um pelo outro, não precisando de mais nada para sobreviver. Eu e minha amiga pensamos o mesmo: “Romeu e Julieta fugiram da Itália para Londres junto com Shakespeare e foram morar no metrô!”
O homem abriu os olhos levemente. Eram muito azuis. Voltou a fechá-los e trouxe a mão da mulher mais para perto do seu peito. Nem se deu ao trabalho de olhar ao redor. Ele não tinha preocupações com bandidos ou terroristas. Estava calmo, feliz.
Minha amiga sugeriu que tirássemos uma foto, mas não tivemos coragem. Era lindo demais ver aqueles dois, abraçados, à mercê de um mundo todo ao qual eles ignoravam com aquela tranquilidade de quem não tem nada a perder, porque o bem mais precioso que eles tinham ninguém poderia roubar.
Pareciam tão desprotegidos, porque quando uma pessoa dorme está tão vulnerável. E porque eram tão delicados. Talvez fossem seres encantados, como nos contos de fadas. Só sei que não tive coragem nem de acordá-los e conversar com eles e dizer da grande emoção que me causaram e também não tive coragem de fotografá-los enquanto dormiam. Não me pareceu correto. Talvez eles desaparecessem quando fossem despertados. Eu sabia que ia cometer um ato de suprema grosseria, despertando aqueles dois seres lindos.
Atravessamos a cidade apreciando o casalzinho. Sentimo-nos como aqueles anjos do filme do Win Wenders. Eles nem sabiam que estávamos lá, mas velamos o sono deles durante a curta corrida de metrô. Estávamos prontas a protegê-los de qualquer mal. Saltamos em nossa estação e o casal seguiu viagem. Eles nem fazem ideia de que os trouxemos em nossas lembranças.
O Romeu e a Julieta do metrô de Londres, nem soube seus nomes, e eles nem sabem que viraram tema de uma pequena crônica brasileira. Por esta altura já está começando o Inverno lá na Inglaterra, mas tenho certeza de que onde quer que aquele casal esteja, ainda será Primavera. Mesmo dentro de um prosaico metrô.


Ana Polessi   

Um comentário:

  1. Primavera sempre no universo e no amor desse casal.
    Primavera sempre na sua inspiração maravilhosa, Ana. Adorei o texto.Parabéns.

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