O DIA SEGUINTE
22 de setembro de 1987
Existem momentos na vida de todo ser humano que, por mais
extraordinários que sejam, chegam a ter uma explicação, de certa forma,
plausíveis, aceitáveis. Alguns o enquadrariam como milagres, outros até como
frutos de magia negra, outros ficam loucos e vão morrer em sanatórios. Eu não
saberia dizer em qual destas condições melhor me classificava, deixo isto por
conta da imaginação dos que lerem essas linhas. O que posso afirmar com toda a
convicção é que, quando despertei naquele último dia do outono de 1987, devido
ao interminável som do telefone, eu me senti muito, mas muito perdido.
Primeiramente, o telefone não estava em meu quarto, onde
também não existia criado mudo algum, onde não existia nada que me era familiar
daquele apartamento de classe média, onde eu vivia só já há alguns anos. Apesar
de tentar raciocinar normalmente, a única lógica existente era de que o sonho
continuava; de que na noite anterior eu enchera a cara, pois marretas em
bigornas soavam na minha cabeça; e de que também aquele telefonema só poderia
ser de uma pessoa.
Saí desesperado do quarto e quando toquei o telefone, ele
calou. Sentei desanimado no sofá, cantei baixinho a música da véspera, contei
até dez e estiquei o braço na direção do telefone, que voltou a tocar.
Atendi.
Era minha mãe, me pedindo para levar o carro no mecânico,
para aquela manutenção que essas máquinas de quatro rodas precisam para
continuar circulando.
É claro que eu disse que levava, pois do contrário mamãe
ficaria muito surpresa, já que foi naquela inesquecível manhã que eu dirigi
pela primeira vez o “possante” da família. E era verdade, e todos sabiam, que
eu era louco pra fazer isso. Pois é, como disse, eu era louco para fazer isso,
uma coisa que agora já fizera diversas vezes, dirigindo todo quanto é tipo de
carro, mas que, por causa de um sonho maluco (que agora começava a se
transformar em pesadelo) seria a primeira vez naquele início da primavera.
O mais engraçado de tudo era que aquele dia se tornara
inesquecível não somente pela minha estreia como piloto. Como naquele comercial
do soutien, a primeira porrada a gente também não esquece, principalmente se
ela for com o fusca velho da mãe e se for uma porrada que doeu no bolso, como
foi o caso. No dia anterior, aquele primeiro da série “Sonho Maluco”, eu havia
feito coisas que fugiam do que na verdade acontecera e então, porque não
poderia ser diferente com o fusca? Talvez não pudesse, talvez certos aspectos
de nossa vida simplesmente não pudessem ser mudados, talvez este sonho acabasse
no capítulo “A Porrada” (tornando a série um curta-metragem) ou talvez até eu
não estivesse sonhando...
Era isto que eu tinha medo de pensar, não podia nem queria
pensar nisto, só que a mente era uma tremenda traidora. Eu me via no
consultório do Dr. Barros, aquele cara estranho que dizia poder me ajudar, que
podia ler minha mente, que me assustara tanto ou tal eu estava agora. Aquele
cara que parecia ser um bruxo, é, um bruxo. Somente esse tipo de ser faria
tremenda mágica; somente um ser como ele faria com que o hoje parecesse ontem,
mas é aí que estava o problema, de alguma forma que não sei explicar o que
acontecia não parecia ontem, era ontem. Ou passado, para ser mais exato.
Peguei a chave do fusca, que morava num prego ao lado da
entrada da cozinha, saí pela lavanderia chegando à garagem e lá estava a
belezinha. Lembro-me da excitação que senti ao abrir o portão da garagem
coberta e sair rodando em marcha lenta. Se não me engano, na época nem fechei o
portão, tal a adrenalina que me incendiava, adrenalina esta que certamente me
ajudou a ocasionar o acidente.
Procurei fazer tudo igualzinho e só mudei o percurso, afinal
o sonho era maluco, mas eu não. Passei por uma rua paralela onde acontecera (no
passado, presente, sei lá) o acidente, chegando são e salvo e não estranhei quando
li no dia seguinte (é, dia seguinte) que dois veículos haviam colidido onde o
fusca de mamãe sofreria o acidente. Como por capricho do tempo, este alterou os
personagens, mas não o fato. E também não estranhei muitas outras coisas que
aconteceram, coisas inevitáveis para o bom andamento da história, eu acredito.
Naquele sábado, depois do check-up realizado pelo mecânico
de confiança da minha mãe, abasteci o carro e rodei por várias horas pela
cidade toda, parando quando já estava exausto, lá por perto das 18 horas. Mamãe
me deu uma bronca daquelas, onde já se viu ficar rodando por muito tempo de
carro quando um dia antes havia ido parar no hospital por estar estressado, mas
bastou um sorriso meu somado a um abraço para que ela se tranquilizasse e me beijasse,
como a um bebê que eu fora. Já estava me acostumando com a ideia daquela
situação devido ao tempo em que passei pensando somente no assunto e
provavelmente ficaria muito triste se fosse obrigado a acordar agora. Alguém me
dava uma segunda chance, fosse obra do destino ou daquele bruxo, em ambas as
situações a mão de Deus teria que estar presente, pois sempre acreditei que Ele
era o Grande Escritor da história chamada vida.
Resolvi sair novamente naquela noite e, quem sabe, encontrar
aquela princesa novamente. Não vou mentir dizendo que estava pensando
seriamente nisto, meu desejo mesmo era de procurar desesperadamente por Pati,
onde quer que ela estivesse morando, dar uns tabefes em quem quer que esteja
namorando ou saindo com ela e depois sei lá, raptá-la, quem sabe.
Mas não ia fazer isso, eu sabia, não conseguiria fazer isso,
não seria justo. Por quê? -- Você deve se estar perguntando. É simples: eu
tinha noção do que acontecera na vida dela, do namoro com o marido, do
casamento, dos filhos, das decepções que ela sofrera; mas eu tinha outro
pensamento que me dava medo: e se eu não conseguisse conquistá-la, se ela me
visse novamente somente como um grande amigo, se já fosse apaixonada pelo
futuro marido? Ahh, e aí? O que seria de mim? Iria passar dos dezenove anos até
o final da minha vida sofrendo por ela, sonhando com ela, não, eu não
aguentaria. Aí sim eu iria ter certeza que só poderia ter sido obra de um bruxo
aquele retorno, um retorno para que eu pagasse por amar alguém que já
“pertencia” a outra pessoa. Não, era um risco enorme a correr para um coração
cansado de sofrer, deveria haver outro caminho e eu talvez o encontrasse, quem
sabe não seria até aquela princesinha linda que faltava para que eu me
reencontrasse com a felicidade, que eu achava que me abandonara há tanto tempo.
(Capítulo retirado do livro Jonas do autor.)
Joel Garcia da Costa
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